[EUROPA] SOFÍA X VOGUE BRITISH
Oct 16, 2024 23:09:19 GMT
Post by adrian on Oct 16, 2024 23:09:19 GMT
[DIVULGAÇÃO PARA PARADISE & ESPADA]
Consolidada como um dos grandes nomes da música latina e também internacional, Sofía é capa e recheio da educação de novembro da revista VOGUE UK. A estrela latina concedeu uma entrevista sincerona sobre trabalho, feminismo, influência e xenofobia para a repórter Sarah Abdullah-Kajur, profissional imigrante que compõe o time fixo da revista. A entrevista foi concedida através de um bate-papo remoto e é distribuída ao longo das páginas daquela edição.
Sarah – Sofía, gostaria de, em primeiro lugar, a sua disponibilidade para conversar conosco em meio a um momento seu que é de muito trabalho. Aliás, você é uma mulher que trabalha muito. Uma das coisas que mais admiro em você é essa urgência em estar sempre produzindo.
Sofía – De fato, acho até que poderiam me chamar de workaholic, mas eu não acredito nisso. O trabalho para mim é a minha vida. Eu sou cantora e é isso que me motiva todos os dias a levantar da cama e fazer o que faço. Não é só uma obrigação ou algo que me faça ganhar dinheiro apenas; é a minha essência. Para mim é muito importante estar sempre alerta para o que está em voga na indústria musical, por exemplo, para que eu não me perca no meio desse turbilhão social ao qual estamos imersos. E isso reflete, também, em uma necessidade que tenho de estar sempre fazendo música. É algo que posso dizer que sai do meu próprio controle. Estive finalizando o meu disco que sairá brevemente e me peguei pensando já no próximo álbum, acredita? Isso é muito bom, por mostrar que me empolgo com àquilo que faço, mas acaba sendo prejudicial por não permitir com que eu foque em uma única coisa apenas. A minha cabeça fervilha e parece um vulcão prestes a entrar em erupção [risos].
Sarah – E como você lida com esse ímpeto de trabalhar tanto que, nas suas palavras, chega mesmo até ser prejudicial ao foco que você dá nos seus trabalhos.
Sofía – Sarah, o que eu tento fazer nesses momentos é controlar os meus impulsos para que nada atrapalhe o que eu estiver fazendo naquele momento. Eu posso, sim, pensar no próximo disco, mas tendo a noção de que o que eu devo terminar é aquilo que estou me dedicando. Às vezes não consigo e tenho que adaptar algumas coisas [risos]. É um esforço hercúleo para me concentrar, mas, no fim, acredito que consigo entregar algo verdadeiramente coeso e que esteja em conformidade com aquilo que havia idealizado desde o início. Sou bastante flexível quanto a mudar de rota no trabalho. Nunca tive problemas em refazer algo ou em descartar, por exemplo. Isso é algo que só podemos garantir após anos de trabalho duro.
Sarah – Há quase uma década você fez a sua estreia na indústria fonográfica e hoje você é considerada uma das artistas mais relevantes do mundo todo. A sua versão mais jovem sonhava com todo esse sucesso?
Sofía – Ela sonhava em ser grande, mas não a esse ponto. Acredito que é sempre um desejo ser bem sucedida na carreira e, naquela época, era o que eu pensava. Os meus sonhos mais radicais eram aqueles em que eu conseguia colocar uma música no topo, coisa que eu consegui apenas com o segundo álbum. Então, veja, ali meus sonhos tinham acabado [risos]. Brincadeira, é claro. Mas dali em diante eu não tinha noção de onde eu poderia chegar, achava que era o limite que eu poderia chegar. Não me entendam mal, eu acredito em mim e naquilo que faço, mas sabia que era muito difícil que uma artista, que vem de onde eu venho, alcançar determinadas posições. Quando eu estreei a definição de sucesso ainda era a Tieta. Então eu não esperava conquistar tanto espaço na mídia a ponto de ser considerada tão relevante por diversos veículos de comunicação. Para mim é um feito e tanto. Enfim, nunca esteve na minha mente a possibilidade de ser tão grande naquilo que faço. Felizmente, a vida nos guarda muitas surpresas.
Sarah – E foi realmente uma surpresa para você alcançar esse patamar?
Sofía – Sim e não. Não estou querendo me gabar, nem nada, mas eu trabalhei muito para chegar até aqui. Não foi sorte, mas muito trabalho árduo. Lembro das noites em claro pensando em como divulgar as minhas músicas em programas de TV, de escolher as roupas mais bonitas e mais baratas para ir em premiações, das respostas que deveria dar em entrevistas, enfim. Tudo foi muito difícil e hoje ainda sinto essa dificuldade, por incrível que pareça. Pode até parecer paradoxal que eu, uma artista que vende milhões de singles e discos no mundo todo, diga que ainda sinto dificuldade que a minha música encontre barreiras; mas é assim ainda. Atribuo isso à uma visão bastante corrente de que a música latina é genérica e pobre, se comparada aos demais gêneros fora do eixo sul-americano. São incontáveis as críticas que recebi por dizerem que, por exemplo, canto sempre as mesmas músicas. E, normalmente, essas mesmas pessoas escutam álbuns inteiros de músicas que são iguais umas as outras.
Sarah – Isso me leva a te perguntar: o quanto você seria maior se fosse europeia ou estadunidense?
Sofía – Eu não vou poder te dizer isso, pois nunca me imaginei nessa posição. Por mais que saiba que o fato de ser latina me priva de muitas coisas, nunca achei que deveria conjecturar esse tipo de possibilidade. Não conseguiria te dizer o que poderia acontecer se eu fosse estadunidense. Com certeza não iriam me criticar falando que sou genérica [risos]. Mas isso é só que acho. Nunca achei que o lugar de onde viesse iria impactar mais que o meu próprio trabalho.
Sarah – Quando você percebeu que algumas das críticas que eram direcionadas a você tinham algo além da mera crítica musical?
Sofía – Eu soube disso quando, após Berlin, acusavam-me de lançar músicas sempre muito parecidas. Eu olhava para aquilo e me perguntava de onde eles achavam que àquelas músicas eram iguais umas às outras e ficavam realmente sem entender o que queriam dizer. E não falo isso apenas de críticos, mas de outros artistas também. Foi duro perceber que esse tipo de comentário só estava sendo feito por se tratar de ritmo latino. Em todos os gêneros há um padrão que os caracteriza, mas ninguém reclama que artistas europeus, norte-americanos e asiáticos seguem o mesmo padrão sempre como reclamam do que nós fazemos. Acho que tudo bem você se incomodar com a semelhança, mas aí acredito eu que duas críticas deveriam direcionar-se para todes e mapas apenas para um gênero específico. Para mim, é estranho e injusto. Deveria valer para todos os tipos de música, mas, aparentemente, só serve para um estilo. E tudo bem, sabe? Afinal, não importa o que fale, será algo que dificilmente irá se modificar.
Sarah – E como você tem lidado com isso, na prática, até aqui?
Sofía – Eu ignoro [risos]. Acho que o que for realmente relevante eu busco ver o que posso adaptar para a minha vida, mas de resto, quase nunca dou ouvidos a esse tipo de comentários. O melhor a se fazer é ignorar.
Sarah – Você é uma figura inspiradora para mulheres ao redor do mundo. Como você enxerga o papel do feminismo na música e na indústria do entretenimento hoje?
Sofía – O feminismo redimensionou o papel da mulher na sociedade como um todo, não apenas na indústria do entretenimento. Sei que há um movimento de contestação ao que o feminismo representa, principalmente pelas forças conservadoras, mas não podemos negar a importância que os movimentos feministas tiveram para a nossa independência social, financeira e política. As críticas vem de grupos e pessoas que alegam estarmos em uma sociedade que rompeu com a tradição, mas é importante, também, agradecermos por esse rompimento. Se, de acordo com a tradição, as mulheres deveriam resignar-se à cozinha, imagina onde estaríamos nós duas agora. Para mim não basta apenas falar em feminismo, mas precisamos falar das feministas que fizeram a nossa história um pouco mais autônoma. Temos nomes que, à nível mundial, sacudiram as estruturas patriarcado e fizeram com que as nossas vozes fossem ouvidas pela primeira vez. Não vou citar nenhuma para não ser injusta, mas essas mulheres moldaram toda uma revolução sexual. Na indústria da música e do entretenimento, no geral, posso dizer que as mulheres puderam finalmente sair do casulo que as colocavam como artistas de segunda categoria ou algo do tipo. Pudemos, pela primeira vez, assumirmos papel de direção em produções, de agentes mesmo. É claro que tudo isso não significou uma democratização da cultura, principalmente se levarmos em consideração a exclusão de mulheres não-brancas nesses circuitos. Infelizmente, outro ponto necessário a se destacar é que os movimentos feministas de outrora eram, em sua grande maioria, centrados nas demandas das mulheres brancas.
Sarah – Considerando a sua vivência hoje, sente que há uma abertura maior à outras demandas que não sejam àquelas de mulheres brancas?
Sofía – Ao meu ver, aconteceu uma mudança necessária no que tange a abrangência de mulheres negras, indígenas e tantas outras, mas ainda é muito pouco. Continuo achando que o movimento feminista hegemônico é aquele capitaneado por mulheres brancas e que se apoiam nas demandas destas. Veja, não tenho problema nenhum em mulheres brancas em cargos de poder, eu sou uma mulher branca, mas não dá para fechar os olhos para a situação de marginalização que mulheres não-brancas ainda são submetidas dentro destes movimentos. O discurso é “liberdade para as mulheres”, mas, no fim, não são todas as mulheres que merecem essa liberdade. Enquanto nós, mulheres brancas, gritamos por ror respeito aos nossos trabalhos, mulheres negras, por exemplo, tem que lidar com o racismo e o machismo simultaneamente. A régua não é a mesma para todas nós. Por isso eu defendo uma prática feminista que não seja exclusiva, mas inclusiva. Essas mulheres não podem ficar em segundo plano. E há uma dificuldade inerente a esse processo: mulheres brancas, em sua grande maioria, reproduzem o mesmo discurso de violência dos homens quando se trata de mulheres não-brancas. Essa dimensão do poder faz com que um movimento que deveria incluir a todas, inclua apenas um número bem reduzido de sujeitas. Não vejo, ainda, como podemos desmantelar essa situação. É histórica. Lembro de Angela Davis falando sobre o quanto as sufragistas eram racistas com os homens negros recém-libertos. Não adianta ser contra apenas um tipo de opressão, é preciso ser contra todas! O mesmo quando me refiro a mulheres imigrantes, Sarah. Fechamos os olhos e ouvidos para o que elas têm a dizer como se não importasse. O feminismo, em geral, ainda tenho muito a aprender.
Sarah – Seu trabalho está sempre em destaque, e você equilibra múltiplas responsabilidades como cantora, empresária e ativista. Como o feminismo influenciou a forma como você lida com sua carreira?
Sofía – Engraçado que quando entrei na indústria eu me considerava um arauto da luta feminista por ter conseguido chegar em um lugar que muitas artistas mulheres não haviam chegado e hoje, ao refletir sobre esse meu pensamento anterior, vejo o quão alienada eu era. A educação liberta e, sentindo esse deficiência em mim mesma, procurei estudar e me deparei com um mundo totalmente novo aberto pelos livros. Estudar foi um dos momentos em que a minha vida se tornou realmente esclarecida. Com isso, contudo, não quero dizer que não preciso aprender mais nada, pelo contrário, os estudos nos levam a um estado de coisas que indicam que pouco sabemos sobre o nosso próprio mundo. Em relação à minha carreira, acredito que o feminismo tenha atuado de forma a me tornar uma artista muito mais preocupada com as mensagens que coloco no mercado. O primeiro livro que li foi o Mulheres, raça e classe da Angela Davis, como citei anteriormente, e lembro do meu choque em perceber o quanto o movimento sufragista norte-americano era excludente. Fiquei genuinamente decepcionada com a forma que essas mulheres brancas desconsideravam as vivências negras e pobres na lita por libertação feminina. E aí eu me dei conta de que o feminismo sem essas mulheres marginalizadas não era nada. Como irei lutar contra a desigualdade se, internamente, eu contribuo para a reprodução dessas estruturas? Meu incômodo me fez repensar algumas das coisas as quais eu estava seguindo na minha carreira, na forma de olhar para àquelas que colaboravam comigo e com o meu discurso público.
Sarah - Você já falou sobre suas experiências pessoais com preconceito e estereótipos como mulher latina. Como foi enfrentar essas barreiras na indústria global?
Sofía – Gostaria de poder te dizer que essas barreiras findaram, mas infelizmente ainda persistem. O sucesso ao qual estou fazendo parece não refletir essas dificuldades, porém ainda sinto que estas persistem e afetam a forma como as pessoas lidam com o meu trabalho. Vou fazer um retrospectiva do início até aqui. No início da minha carreira as barreiras eram óbvias, mas muitos menos aparentes, elas começaram a aparecer para mim a partir do momento que comecei a receber mais atenção do público. Nesse momento em diante me vi assolada por uma série de críticas que, ao meu ver, são muito redutoras e injustas. Acho que já falei sobre como as críticas que recebo sempre vêm acostadas à um discurso reducionista e pautado em achismos acerca da música latina. Um dos que mais me incomodava era a ideia de que eu deveria ser mais sexy simplesmente por ser latina. Há uma dimensão social que associa o feminino à sexualidade inexoravelmente, então, nós, mulheres, sempre somos reduzidos ao nosso corpo e o que dele poderão disfrutar enquanto um corpo “inerte” e sexualizado. Eu lutei muito para tentar entender esse tipo de discurso que se voltava contra mim, mas desisti a partir do momento em que vi que não tinha sentido. Esse discurso está ancorado na visão do que seria a cultura latino-americana. Outra dimensão desse reducionismo é a de que só fazemos músicas parecidas, mas não vou me alongar nesse quesito, afinal, já abordamos esse assunto. Hoje eu consigo lidar melhor com essas críticas, embora, confesso, ainda me sinto incomodada quando elas aparecem. Sou uma mulher muito mais confiante para enfrentar essas dificuldades que me colocaram hoje do que anteriormente. A música é uma das formas que eu consegui para me safar de uma bolha que, com certeza, me colocaria em uma posição subalterna em relação aos meus colegas de indústria. É óbvio que vir de onde eu venho dificulta muito as coisas.
Sarah – Estamos vivendo em uma era que os discursos sobre racismo e xenofobia tem se proliferado em todo o mundo e, apesar das deficiências sociais que ainda possuímos, considero que avançamos em termos de visibilidade. O quanto você considera esse movimento benéfico não só para você, mas para a indústria da música em geral?
Sofía – Eu fico feliz em saber que as pessoas estão dando mais espaço para essas discussões. Há muito tempo que pessoas racializadas estão lutando para terem as suas vozes ouvidas. Genuinamente sei que isso ainda é pouco para o a situação calamitosa em que estamos vivendo enquanto sociedade. É necessário ouvir estas pessoas e estamos dando um passo gigantesco na construção de uma humanidade realmente engajada. Essa abertura gradual é benéfica para toda a sociedade, mas em relação à música, acredito que as novas gerações irão se beneficiar disso e aproveitar o momento para que não sejam marginalizados pela cor de suas peles ou pelo lugar de onde vem. Não estamos em um momento que comemorações são válidas, pelo menos não para mim. Sabemos que a reação da grande maioria das pessoas ainda é de repulsa, de exclusão e de preconceito. Enquanto sociedade ainda temos que evoluir muito. Fico feliz, entretanto, que estamos dando esses pequenos passos rumo à um mundo mais igualitário e justo para todes.
Sarah - Sendo uma artista latina que conquistou o mundo, você já sofreu discriminação ou xenofobia enquanto viajava ao longo destes anos? E como essa discriminação moldou a sua visão sobre inclusão no mundo da música?
Sofía – Teve um momento muito específico e que me deixou muito frustrada e triste também. Aconteceu ainda quando estava trabalhando no meu segundo álbum. O episódio em questão envolveu uma pessoa que se dizia fã do meu trabalho mas, ao ver que as suas expectativas não seriam atendidas por mim, ela se revoltou contra mim e começou a falar a respeito de onde eu vinha com ataques muito violentos mesmo. Daquele dia em diante eu encontrei a xenofobia na materialidade. Até então eu só conseguia visualizar como abstração, mas o ataque daquela garota me abriu os olhos para o mundo insensível ao qual eu estava inserida. E tudo isso começou por eu não conseguir dar um autógrafo a ela, acredita? Estava ela e mais cinquenta pessoas em volta de um hotel em que estava hospedada e estava realmente atrasada para um compromisso muito sério. Eu expliquei que não poderia dar atenção naquele exato momento, mas prometi que viria em outra hora para atende-los das melhor forma possível. Ela com conseguiu conter os seus instintos e começou a proferir palavras de baixo calão contra mim, contra a minha família e a minha cultura. Ela chegou a me perguntar se eu estava trabalhando como camareira ou cozinheira no hotel por que o “meu povo adora tirar emprego” de outras. Veja só: isso partiu de alguém que há segundos atrás segurava uma placa que dizia que o amor que ela sentia por mim era infinito. Eu fiquei sem reação algumas, mas alguns dos fãs que estavam ao redor dela reagiram imediatamente. Eu preferi não ver o que iria acontecer e entrei no carro, mas pedi para que ninguém interferisse, afinal, se ela teve a coragem de falar tudo aquilo em voz alta para mim, ela deve, também, ter a coragem de enfrentar as consequências de absolutamente tudo o que ela falou. E eu sei que isso pode parecer vingança ou rancor, e é mesmo. Eu não sou nenhum objeto sem sentimentos e o que eu senti naquele momento foi a vontade de esmurrar a cara dela. Essas pessoas esperam que nós peçamos desculpas por serem quem somos apenas para poder pisar em nós mais uma vez, mas comigo isso não cola. Naquela época eu não soube reagir, mas hoje eu com certeza teria sido muito mais enfática no meu posicionamento. Tanto é que isso nunca saiu na mídia, por exemplo. Eu fiz todo um movimento para jogar essa situação embaixo do tapete, porque me fez mal.
Como você vê a interseção entre feminismo e xenofobia, especialmente no contexto de mulheres imigrantes e de minorias étnicas?
É um movimento que considero de fundamental importância, afinal, as mulheres não estão apenas sofrendo com machismo, mas a sua identidade étnica e classe social estão intrinsicamente dotados de significação nas opressões diárias. A interseccionalidade é vista por muitos grupos, hoje, como um entrave as lutas contrárias as condições de superexploração dos trabalhadores, mas considero que essa é uma visão muito reducionista de toda a situação. Ao entendermos que uma mulher sofre por ser mulher, mas também por ser negra, cubana e pobre, poderemos analisar melhor as questões que nos assolam e agir diretamente sobre elas. Sei que isso pode parecer muito intelectual e que está aquém da realidade do que chamam de massas, mas precisamos continuar falando sobre isso e levar os discursos para frente de forma que não seja mais estranho à população geral a interseccionalidade. Talvez seja um termo que não entre na pauta discursiva, mas a ideia de que as opressões se coadunam, sim. Eu não sou uma mulher imigrante, mas estou sendo comumente atacada como se fosse uma. Assim, eu considero entender a posição subalternizada que essas mulheres enfrentam em mundo em que, cada vez mais as colocam em situações que não veem outra alternativa que não abandonar os seus países de origem. Já nos perguntamos o porquê dessas mulheres e suas famílias precisarem imigrar? Normalmente é pela pobreza, pelo descaso do poder público e tantas outras razões que mostram a indiferença de uma classe social, política e econômica frente as demandas da população mais pobre. Repensar a forma como lidamos com a xenofobia é inserir as questões de gênero, orientação sexual, raça e classe na equação!
Sarah - Você tem uma base de fãs global que inclui pessoas de diferentes culturas. Como sua música reflete essa diversidade, e como você promove o respeito e a inclusão entre seus fãs?
Sofia - Acho que o primeiro passo para isso é eu mesma promover o respeito à diversidade. Sou uma voz influente e tenho noção do quanto responsável eu sou por determinados discursos e como eles entram no circuito mental daqueles que me acompanham. É por isso que nos últimos tempos eu venho adotando uma postura muito mais incisiva politicamente; sei do quanto àquilo que falo pode inspirar os jovens a seguirem determinados comportamentos ou de elaborar ideias de mundo. Não sou adepta a acepção de “influenciar” meu público, acho que isso coloca o público em um lugar que é de passividade, mas entendo o que está por trás disso. Não posso ser uma cantora que promove respeito se assim não o fizer. As minhas músicas sempre tiveram um lado muito positivo, mas hoje vejo que há uma necessidade para que mais nuances estejam colocadas nas músicas, como eu fiz em algumas canções desse meu último álbum, ANA e Adicto.
Sarah - O movimento feminista tem várias correntes de pensamento. Qual vertente você sente que mais te representa e por quê?
Sofía - Eu posso dizer a qual corrente eu não pertenço: ao movimento radical. Esse radicalismo que essas mulheres propõem é, em certa medida, muito conservador. Elas sustentam uma visão de mundo dicotômica entre homem e mulher e a nossa história já nos mostrou que esses dois polos são insuficientes para explicar o mundo como ele é. Que radicalidade é essa que coaduna com estruturas de opressão? Acho que é um movimento que está fadado ao fracasso e, assim espero, realmente esteja. Eu me vejo muito maia ligada ao feminismo que luta pelo fim de todas as opressões e está dedicada a não abandonar nenhuma irmã ou irmão nessa batalha. É a questão da intersecção que, novamente, vem à tona para nós. Eu sou uma mulher branca, mas isso não significa que eu deva me levantar apenas contra as opressões que sofro. A luta individualizada ou segmentada é uma das piores formas de lutar contra a opressão. Deixamos no caminho diversas pessoas que, assim como nós, precisam de libertação, de carinho e acolhimento. E eu me recuso a concordar com algo tão violento.
Sarah - Como o fato de ser uma mulher latina molda sua abordagem ao feminismo? Você acha que o feminismo latino tem particularidades que nem sempre são discutidas no movimento global?
Sofía – Acho. As particularidades sociais, econômicas e políticas da América Latina torna a questão muito mais complexa para a análise. Inclusive, se formos realmente a fundo descobrirmos que dentro da América Latina existem divisões em relação à opressão de gênero que é ainda mais complexa. Eu entendo que o mundo eurocentrado não consegue ainda perceber que a luta individualizada que eles travam não é nada mais que um reforço às estruturas de opressão que incidem sobre todas as mulheres do mundo. O patriarcado é uma instituição que encontrou terreno fértil na Europa. Acredito que o feminismo mundial deve prestar atenção as particularidades regionais para que as suas lutas sejam realmente efetivas. Não dá para acabar com o machismo ou sexismo em apenas um lado do planeta e achar que está tudo bem. É uma luta coletiva e o coletivo é o mundo. Se você, deliberadamente ou não, coloca de escanteio as demandas de outros grupos sociais está sim sendo um reprodutor da opressão. O que mais me indigna é que não se trata de ignorância, mas de uma falta de caráter e senso de empatia para com outros grupos. Os movimentos hegemônicos não estão preparados para aceitar que não constituem mais o centro do universo. Infelizmente é uma situação que temos de encarar de frente.
Sarah - Ao longo da sua carreira, você já percebeu mudanças na maneira como a indústria trata mulheres, especialmente aquelas que vêm de comunidades marginalizadas?
Sofía – Sim. Ao longo dos meus anos na música vi espaços que outrora eram dominados por homens brancos e cisgênero sendo ocupados por mulheres, negros, indígenas e outras tantas comunidades marginalizadas. Mas isso só aconteceu em postos de trabalho secundário, se assim posso chamá-los. Secundários no sentido de que não são os altos postos de trabalho, como o de executivos, por exemplo. Para chegar nesses lugares de maior relevo é um caminho que ainda se encontra fechado para as pessoas socialmente marginais. Não estou querendo dizer com isso que não tenhamos evoluído, mas que essa evolução não corresponde à ocupação de cargos de liderança maiores. É uma abertura lenta demais para uma sociedade que é tão desigual e injusta. Temos muitas empresas hoje que estipulam uma cota de 10 à 20% de contratação de grupos como as mulheres, negros, pessoas LGBTQIAPN+, mas isso é uma medida paliativa muito restrita. Avançamos sim, mas ainda nos resta um caminho extremamente longo para percorrer.
Sarah - Você trabalha com uma equipe multicultural e diversa? Como você garante que seu ambiente de trabalho seja inclusivo e acolhedor para todos?
Sofía – A minha equipe, hoje, é composta por um grupo diverso de pessoas de diferentes etnias, nacionalidades, orientação sexual e gênero. A maioria das pessoas que trabalha comigo são mulheres, sendo que mais da metade são de pessoas negras. Sinto que ainda não consegui fazer àquilo que deveria fazer enquanto uma artista que tem o tamanho como eu tenho. Ainda tem muito trabalho a ser feito e estou disposta a enfrentar tudo e todos para conseguir estabelecer uma equidade fundamental entre àqueles que me fazem ser quem sou. Para garantir um ambiente de trabalho saudável começamos por estabelecer algumas noções primordiais: respeito e confiança. Não temos lugar físico para trabalhar em lugar nenhum do mundo, todos que estão comigo cumprem regime de home office, nosso contato acaba sendo muito restrito fisicamente, considerando que temos pessoas que moram no México e outra no Japão, por exemplo. O trabalho é realizado a partir de muitas mãos e com o respeito mútuo de todas as partes. Meus companheiros de equipe, porquê é isso que eles são, meus companheiros, tem um ambiente livre para poder reclamar, levantar sua voz e liberdade para ser quem são e eu tenho muito orgulho de poder proporcionar isso à eles. Novamente, sei que ainda há muito a melhorar e estou disposta a fazê-lo.
Sarah - Em sua opinião, como a mídia pode ajudar a combater a xenofobia e promover a aceitação de diferentes culturas, em vez de reforçar estereótipos?
Sofía – Ao meu ver, o primeiro passo seria reconhecer esse papel de divulgação de estereótipos. Não dá para combater a propagação dessas imagens que são restritivas e falsas sem ter a dimensão do seu próprio papel como divulgador destas imagens. Isso significa que a própria mídia tem que vir a tona reconhecer a responsabilidade que tem sobre algumas das mazelas sociais que nos assolam. Esse seria o primeiro passo, mas aqui falo apenas do início. O segundo seria o de contratar uma equipe diversificada e ouvi-la com o intuito de promover novos discursos, agora pautados na inclusão e no respeito à diversidade. Essa equipe deve ser constituída de forma a ocupar os espaços que lhes eram restritos anteriormente. O que significa desestruturar a sua própria estrutura. Não é uma tarefa fácil. O alcance da mídia na contemporaneidade é impossível de ser até mesmo contabilizada o que dificulta, por vezes, mensurar o seu impacto na sociedade. A partir da formação de uma equipe diversa, centrada na divulgação de elementos positivos, a mídia deve abordar os estereótipos e descontruir. É um processo pedagógico, na verdade. Aprendemos muito vendo televisão, ouvindo rádio e etc. Se quisermos mudar, vamos ter que ressignificar todas essas imagens negativas que ganharam o mundo.
Sarah - Você disse que já sentiu que teve que trabalhar mais duro por ser mulher ou por ser latina na indústria musical. Quais foram os maiores desafios?
Sofía- O meu maior desafio foi que meus colegas pudessem me enxergar como uma cantora digna de respeito. Era considerada como menor que os demais, falo em termos de qualidade mesmo, que diziam não se aplicar a mim. Desde o início sentia seus olhares voltados a mim como algo próximo de uma piada. Poucas vezes, no início da minha carreira, realmente me senti acolhida por colegas. Talvez eles não acreditassem que eu era capaz de ser tão boa quanto eles achavam que eram. Sentia muita tristeza por me verem com esses olhares, para ser bem sincera. É difícil manter a cabeça erguida quando você está sendo constantemente desafiada e desacreditada pelos seus pares. Para uma artista novata como eu era isso foi muito danoso. Eu não conseguia imaginar uma forma de sair daquela situação de uma maneira cômoda e que a minha saúde mental não fosse realmente afetada por tanto desprezo e desdém. Isso não deveria ser feito com ninguém, sabe? Hoje eu superei todos esses obstáculos que colocaram na minha frente e me consolidei como uma das maiores artistas do mundo. No entanto, sei que isso representa muito pouco. Sou eu, Sofía, que está no topo, mas quantas outras cantoras latinas ou mulheres negras, por exemplo, tem ainda mais dificuldade de chegar aqui? Eu comemoro chegar aonde eu cheguei, mas lamento que nem todas tenham oportunidade para isso. Estarei nas trincheiras lutando para que, ao meu lado, mais mulheres latinas, negras, transexuais, indígenas, refugiadas e de outros grupos minoritários também estejam aqui, ao meu lado, ou indo muito mais além do que já fui.
Sarah - Você é uma forte defensora de causas sociais. Qual foi o momento em que você percebeu que precisava usar sua plataforma para lutar por justiça e igualdade?
Sofía – Quando percebi a mim mesma como reprodutora de determinados estigmas e preconceitos. Eu estava, inconscientemente, reproduzindo e acobertando falas que eram contrários àquilo que eu acreditava ser o certo. Esse “estalo” veio com as acertadas acusações de que eu estaria acobertando a transfobia de uka colega de indústria, uma amiga qie havia falado uma barbaridade na época que estávamos confinadas em um reality-show. Por muito tempo eu não entendia o teor dessas críticas, afinal, eu não havia falado nada. Mas descobri da pior maneira que não falar nada é, talvez, pior do que falar. A atitude de “isso não é comigo, não é um problema do qual ei deva le apropriar” reforçou a ideia de que eu concordava com aquilo que ela estava dizendo. E para mim aquelas acusações não faziam sentido, me deixavam muito mal, tanto é que não gostava nem de tocar no assunto. E aí eu tive outra descoberta: eu deveria ter falado muito antes. A minha retratação veio ano s depois, infelizmente. Isso foi realmente um dos piores erros que já cometi na minha vida inteira. Ter deixado isso passar é algo que nem mesmo eu consigo me perdoar. Dói muito tudo isso ter acontecido, mas imagino que deva ter doído ainda mais nos meus fãs transexuais. Desculpas não vão limpar o que eu deixei de fazer, mas espero poder contribuir para me retratar socialmente. Esse é o meu maior arrependimento da vida. A partir de então a minha visão sobre feminismo e justiça social se ampliaram totalmente e eu sabia que deveria tomar atitudes mais enfáticas a respeito do meu ativismo.
Sarah - O que você diria para jovens mulheres que estão começando suas carreiras e enfrentam preconceitos por causa de sua origem ou gênero?
Sofía – Não falarei apenas para mulheres agora, mas quero essas palavras possam ecoar em um público muito amplo. As dificuldades nunca irão cessar e não vou ter nenhuma receita para dar a vocês como driblar as torrentes que irão aparecer, mas se posso dizer algo é que vocês precisam confiar em vocês e no trabalho que realizam. Um dia você pode acordar com dezenas de mensagens ofensivas na internet, mas a arte nunca vai te colocar para baixo, pelo contrário. Ela te levanta e dá sentido ao que nós fazemos mesmo que desacreditem disso. Não é um caminho fácil e para algumas pessoas ainda é mais difícil por terem uma cor de pele diferente, vir de um lugar diferente, etc. Acreditem na sua arte, mas não se esqueçam de lutar por seu espaço. A indústria pode ser violenta e, às vezes, temos de assumir ima postura mais violenta também. Contudo, não devemos perder a ternura em acreditar num futuro que seja melhor para todes.
Sarah - Quais são os passos que você acredita que a sociedade e a indústria do entretenimento ainda precisam dar para combater o machismo e a xenofobia de forma mais eficaz?
Sofía – Reconhecer que a sociedade exerce sobre os cidadãos, todos eles, uma pressão que acaba nos transformando em peças de um jogo que apenas os governantes tem poder. Somos tratados como massa de manobra e impelidos a aceitar qualquer coisa que nos oferecem como se fosse a melhor coisa que poderíamos ter e não é assim. A sociedade precisa reconhecer que é racista, sexista, homofóbica, transfóbica e xenofóbica. Afinal, como melhorar algo que sequer você reconhece como um erro? E isso é muito difícil. As pessoas não estão preparadas para realizar uma autocrítica suficientemente profunda a ponto de reconhecer a opressão como uma base social. A partir dela é que o sistema se constrói excludente. O ponto para mim, pelo menos para iniciarmos uma verdadeira revolução l, é admitirmos o que realmente somos. Se não o fizermos qualquer tentativa de mudança estará fadada ao fracasso. Sei que parece desanimador, mas é a verdade. E, justamente por isso, na minha opinião, deveríamos nos animar a construir um movimento empenhado em controlar a narrativa e superar a fim de construirmos um novo mundo em que a igualdade seja a máxima .
Sarah - Muitas mulheres enfrentam a pressão de conciliar vida pessoal e carreira. Como você lidou com essas pressões sociais impostas?
Sofía – Vou te contar um causo da minha infância que vai responder a sua pergunta. Estávamos minha mãe e eu no supermercado em um dia de semana, eu acho que tinha meus doze anos, e já aguardávamos para ser atendidas no caixa. Na nossa frente estava um senhor que aparentava uns setenta anos e que desde o momento que nos aproximamos do caixa já percebíamos alguns olhares estranhos dele para conosco. De início pensamos que ele estava apenas impressionado com a minha, já que naquela época ela tinha algumas mechas do seu cabelo negro em um tom avermelhado. E isso causa estranhamento nas pessoas mais velhas, normal. Tudo começou a ficar muito estranho quando ele abordou a caixa do supermercado e perguntou se ela achava que uma “mulher digna” deveria pintar o cabelo de uma cor tão chamativa quanto o vermelho. A minha mãe ouviu, mas não quis se intrometer até que ele tivesse terminado. A caixa nada respondeu, sorriu e continuou passando as compras dele. Ele continuou a dizer que mulheres assim tinham tendência à prostituição e que na sua época as mulheres se davam ao respeito, ficavam em casa e eram submissas ao marido. Instantaneamente, minha mãe começou a gritar com o velho. Foi uma confusão total. No fim, ele pediu para chamar o gerente do supermercado para fazer uma denúncia ao comportamento de mamãe. E qual não foi a surpresa dele quando viu que a gerente ere uma mulher? Minha mãe contou exatamente o que a levou a ter aquele comportamento, a caixa confirmou e quem foi expulso foi ele mesmo. A minha mãe me ensinou a não ficar calada quando tentavam me impor determinadas coisas apenas por ser mulher. A vi com outros olhos depois desse dia. Ser mulher é, para a maioria das pessoas, uma restrição: mãe, esposa e dona de casa. Sabemos o quão difícil foi para que a sociedade aceitasse o trabalho feminino fora de casa; ele só foi aceito quando viram que ele servia para acréscimo da renda familiar. Não tinha nada a ver com liberdade financeira e social das mulheres. As convenções de gênero que circulam pela sociedade ainda são muito fortes, embora tenhamos conseguido nos livrar de algumas destas no decorrer das últimas décadas. Tive muita sorte de ter uma família que não compactuava com esse tipo de discurso. A minha vó, que hoje tem oitenta e cinco anos, sempre me orientou a não me guiar para o que as pessoas diziam que eu deveria ser apenas por ser mulher. Ela e a minha mãe são exemplos de mulheres fortes e que moldaram a minha visão de mundo.
Sarah - Sua música aborda temas como empoderamento feminino e desafios que as mulheres enfrentam. Você acha que artistas têm a responsabilidade de falar abertamente sobre essas questões?
Sofía – Não só acho, como estou completamente convencida que isso é um pressuposto para ser artista. O movimento da “arte pela arte” é muito bonito, mas é falho quando consideramos o contexto social ao que ele é criado. E esse movimento eu entendo por aquele que afirma a independência da arte de qualquer ideologia. Contudo, mesmo que eles afirmem uma postura a-ideológica, o que é impossível, eles fomentam uma cultura ideologicamente excludente. Toda cultura é política, o que diferencia uma da outra são seus termos primordiais. Acho que os artistas tem um compromisso social muito potente para ficarem calados. Estão esperando o quê? Que algo de maior grandeza aconteça para se manifestar? Eu entendo o discurso de uma suposta neutralidade dos artistas, mas discordo veementemente dessa posição. Acho que temos uma posição social que estimula o pensamento crítico e não deveríamos abdicar disso por uma pretensa neutralidade. A quem serve a neutralidade, afinal? Ao poder dominante. Enquanto você fica calado, milhões de pessoas são diariamente exploradas pelo mesmo sistema que te sustenta. As minhas críticas vem, por exemplo, de um lugar muito claro: eu faço parte desse sistema, mas não pretendo contribuir para a perpetuação das mazelas sociais. Eu me oponho a ser uma agente desse processo de opressão. Como artista, que tem uma influência inquestionável e meios para m mobilizar, não posso deixar isso de lado. Seria como fechar os olhos para o mundo e se eu fecho os olhos para o mundo, perco a minha humanidade. Isso eu não posso permitir. Uma das coisas mais valiosas que possuo é a minha empatia para com a dor dos outros e a minha indignação frente a qualquer injustiça. Não quero parecer idealista, mas temos que nos posicionar. Além de artistas somos seres humanos e ficar aquém da dor de nossos irmãos e irmãs é o ato mais violento que poderíamos ter frente a nós mesmos. A coletividade é um elemento importante e se for rebaixado à segunda categoria seguiremos um caminho que nos levará ao abismo. Sei que posso parecer chata com esse discurso, mas se assim for, eu sou realmente muito chata. A minha posição é a de que artistas devem sim se comprometer com as causas sociais do mundo, sejam elas quais for. A influência que temos não nos foi dada apenas para ganhar dinheiro em comerciais ou em turnê. É uma visão muito simplista da nossa realidade. Eu já fui uma dessas artistas descoladas da realidade, hoje considero que não mais. Avançaremos quando reconhecermos o forte conteúdo político daquilo que fazemos no nosso trabalho.
Sarah – Estamos em um mundo cada vez mais globalizado e que as identidades se afirmam fortemente através de alguns símbolos, um deles é a música. Você, enquanto cantora mexicana, observa que é mais fácil ou mais difícil assumir um lugar de destaque na indústria fazendo música com fortes laços identitários.
Sofía – É mais fácil, o que não significa que seja fácil. Pode parecer paradoxal, e é, mas é simples. Digo que é mais fácil se compararmos um contexto histórico afastado. Há, contudo, muitas barreiras à música latina no geral no mercado da música. Somos vistos como artistas de um ritmo só, por exemplo. E isso é reducionista ao extremo. Em HASTA QUE SALGA EL SOL apresentei diferentes estilos diversos e ainda recebi críticas de que faço música genérica. É mais fácil que antigamente, mas é ainda mais complicado sermos vistos com olhares de piadas ou de desprezo. Isso dói muito, sabe? Você não espera que a qualidade do seu trabalho seja medida a partir da visão restrita de um crítico. E com isso não estou querendo dizer que críticos não devam criticar, mas acho que há maneiras melhores de fazê-las.
Sarah – Os seus últimos trabalhos completos como o HASTA QUE SALGA EL SOL e o disco que sairá em breve, o MAS ALLA DE LA LUNA, tem como fio condutor uma homenagem aos diversos gêneros musicais latinoamericanos. Na sua visão, hoje, você conseguiu cumprir com o propósito inicial destes projetos?
Sofía – Eu consegui alcançar feitos incríveis com músicas que me ligam à minha terra, então sim. E não falo apenas sobre números, embora eles também importem, mas de crescimento pessoal e individual. O HASTA foi meu primeiro álbum em que participei da composição das composições integralmente, então deve imaginar o quanto ele significa e vê-lo vendendo mais de quinze milhões de cópias me alegra muito. Foi um disco que fiz com muito amor e vê-lo sendo bem acolhido me faz dormir muito mais tranquila [risos]. Não é um álbum perfeito, tenho noção disso, mas que corresponde ao que eu sentia na época e que eu coloquei tudo de mim em cada uma das faixas. É um disco que me permito ser muito mais aberta do que já fui em qualquer momento da minha carreira. ANA, por exemplo, retrata a minha luta e superação contra a anorexia. Fiz da minha dor uma canção muito fofa para dançar e espalhar alegria para todos àqueles que me acompanham. Este álbum marca um fim e um início para mim. Me sinto muito segura agora para defender a minha identidade musical. Estas músicas, as que lancei e as que irei lançar proximamente, conformam uma Sofía muito mais segura de mim.
Sarah – Sofía ganhou o mundo. Qual a sensação?
Sofía – Eu não consigo entender esse “ganho do mundo” quando penso nas barreiras que ainda existem entre mim e o próprio mundo. Não consigo mensurar o que toda essa projeção internacional fez comigo e com a minha carreira. O salto que a minha vida profissional deu nos últimos anos estava fora de qualquer ato imaginativo para mim. Ser famosa era um sonho desde o início, mas não imaginaria que seria tanto [risos].
Sarah – O que a fama mudou na sua percepção da música?
Sofía – Acredito que a principal mudança se deu através de um acréscimo da minha preocupação em relação às apropriações sociais da arte musical. Veja bem, a fama pode nos levar a invisibilizar as significações artísticas como práticas políticas e sociais. Estas dimensões escapam, muitas vezes, quando chegamos a um determinado patamar e mesmo quando não chegamos lá. A fama me levou a pensar em como eu me portaria frente aos desafios de fazer arte. Iria me render ao mercado? Quanto de mim eu deveria colocar nas músicas? Essa preocupação ainda está presente em toda a minha visão artística hoje. Sei que a música se tornou uma ferramenta de mercado muito lucrativa, mas não está nas minhas intenções contribuir com esse movimento. É claro que o dinheiro é importante, afinal, eu tenho uma equipe para pagar, mas a arte apenas pelo dinheiro não faz sentido para mim. E isso eu tinha claro desde o início, mas atingir um nível de fama absurdo me fez repensar ainda mais o meu posicionamento em relação ao mercado da música.
Sarah – O que podemos esperar de Sofía como um ícone feminista e do poder latino? Sofía, hoje, é única. Como poderemos, enquanto sociedade, criar mais artistas engajados como você?
Sofía – Acho que poderíamos começar esse movimento dizendo que não pode existir outra Sofía, mas que devemos fomentar a existência de outras pessoas que estejam realmente engajadas com a mudança social. Não sou nenhum modelo pronto para que isso seja reproduzido por outras pessoas. Acho que quero dizer que sou um indivíduo singular, assim como você, como a sua família e aos leitores dessa revista. Talvez, esse seja um dos grandes problemas dos movimentos progressistas: querer buscar uma liderança inequívoca. Não quero ser esse tipo de liderança, sequer acredito que ela deva existir. Se posso inspirar algum movimento de artistas que estejam engajados eu diria que ficaria satisfeita em dizer que não precisamos de uma liderança. A luta engajada deve ser autônoma e não restrita à uma única pessoa ou grupo como hegemônico. Eu adoro falar sobre esse assinto porque me permite explorar um lado meu que, muitas vezes, fica escondida sobre a minha voz, aos meus visuais. Precisamos, enquanto sociedade, incomodarmos com as estruturas que submetem diversos grupos sociais à uma posição marginalizada.
Sarah – Sofía, é um prazer te ouvir e fiquei realmente inspirada por suas ideias. Eu e a equipe da VOGUE British agradecemos por sua disponibilidade.
Sofía – Eu quem agradeço pelo espaço, querida. Queria deixar uma última mensagem aos leitores. A luta por igualdade social é muito difícil e olha que estou falando de um lugar bastante privilegiado. Convido a todes para se incomodar com o que é considerado padrão e sublevarem a os seus corpos e consciência rumo à uma visão de mundo mais ampla, inclusiva e complexa. Precisamos problematizar o mundo, e precisamos para agora!