SOFÍA & AWA - JUICIO FINAL [SHORT FILM]
Jun 2, 2024 14:07:08 GMT
Post by adrian on Jun 2, 2024 14:07:08 GMT
PRÓLOGO - AS CONFISSÕES & ORIGEM
A primeira cena do videoclipe era acompanhada por um filtro preto e branco. Era uma cadeira de madeira vazia, localizada numa sala completamente branca e vazia de objetos para além daquela cadeira. Uma câmera estava posicionada na frente do assento. De repente, vários takes de pessoas diversas sentadas na cadeira foram capturados pelo dispositivo eletrônico. As pessoas sentaram-se e olharam diretamente para a câmera; uma delas era Sofía.
Assim que a imagem da cantora apareceu, éramos levado a um campo vazio e no céu, uma nuvem negra de pássaros também negros se movia uniformemente em um círculo. A figura de uma mulher se destacava no meio do campo. No vídeo, o corpo estava distante, mas a câmera logo foi se aproximando do vulto e, ao chegar a cerca de um metro do corpo, descobrimos que a mulher era Sofía. Ela vestia uma roupa dividida em duas partes, sendo a parte inferior algo que parecia uma calça e, na parte superior, uma blusa preta com detalhes sobressalentes. De costas para a câmera, ela virou o seu rosto e o seu semblante era sério. Então, estávamos de volta ao primeiro cenário para ouvir as pessoas falarem sobre suas experiências religiosas e como todes foram vistos como pecadores pelos preceitos religiosos.
[SOFÍA] Aos doze anos já desconfiava que amava meninas, mas ainda não tinha certeza do que era aquilo que sentia. Em um momento da minha vida religiosa, estava prestes a completar a catequese e fui me confessar com um padre. Então contei o que estava sentindo para ele e nunca esquecerei do que me foi dito durante pouco mais de cinco minutos. Me senti suja. Me senti usada. Eu era pecadora apenas por… amar.
[AWA] Ser um menino diferente dos demais não me ajudou muito na vida, muito menos envolvendo religião. Fui sempre muito acuado nos círculos de jovens e o pastor nunca fez questão de que eu me sentisse bem-vindo naquele lugar. Eu não era, afinal. Um desviante, era assim que eles me viam.
[ANGELICA] Fui criada para ser a boa menina que obedece aos pais sem hesitar e ser aquela que primeiro criaria uma família seguindo os dogmas da Igreja. E o que eu fiz? Bem, transicionei. Nunca fui aceita como eu sou, eles ainda esperam o menino que criaram e julgam ser o correto. Eu nunca sequer fui considerada como um ser real para os meus pais.
[EMÍ] Eu era o cristal de casa até o momento que me revelei não seguir determinados padrões. Aos doze cortei o meu cabelo até a altura dos ombros e apanhei dos meus avós; meus pais não fizeram nada. Aos catorze beijei a primeira garota. E me senti completa, quando o mundo me dizia que eu era cria do demônio.
[LUCAS] Não sabia o tamanho do preconceito que tinha dentro da Igreja até o momento em que fui pego beijando um colega, aos dez anos de idade, enquanto o culto acontecia em um domingo. Não sabíamos o que fazíamos e fomos duramente castigados por isso. Eu tenho as marcas do cinto até hoje.
[RODRIGO] Até poucos anos atrás estava dentro de um círculo religioso muito restrito em termos de regras. Namorava outros meninos escondidos, até que um dia o padre me flagrou com um desses namorados. Em troca do silêncio, eu deveria me relacionar com ele. O fiz e mesmo assim ele me delatou. E fui ameaçado de que, se algum dia contasse do que ele fez comigo na sacristia, seria punido como nunca antes.
[TÔNIA] Qual o peso do pecado? Eu não sei. É tão pesado que sequer consigo carregá-lo mesmo depois de anos afastada desse lugar que me fez tão mal.
Como se estivessem voltando no tempo, o corpo dos artistas é coberto por uma nuvem negra. De repente, eles já não estavam mais na catedral, mas sim em um belo e vasto campo. O tapete esverdeado cobria todo o chão, enquanto no céu uma centena de árvores desenhavam sobre as nuvens os seus movimentos. Estavam próximos à uma praia e a areia parecia tão brilhante que podíamos jurar que tratava-se, na verdade, de uma ilusão. A água azul e cristalina balançava levemente ao entrar em contato com as rajadas de vento. Ao perceberam onde estavam, os dois se entreolharam e viram que estavam nus. A falta de vestimenta não pareceu intimidar nenhum dos dois. Eles olharam para o horizonte sem qualquer movimento de seu corpo. Sua atenção foi levada para um grande tronco de árvore que se impunha à poucos metros dali. Era uma árvore grande e, aparentemente, muito velha.
Aos poucos eles foram se aproximando da árvore e olharam para ela com olhos curiosos quando já estavam próximos. Não havia nenhum fruto, nenhum animal. Nada. Mas, em um rompante, uma coisa esverdeada descia pelo tronco velho. Era uma cobra. A cabeça esverdeada do animal tinha um padrão curioso: a pele verde era "decorada" com linhas prateadas que formavam o que parecia ser a letra "S". Sofía e Awa não se assustaram com a aparição repentina da serpente e aguardaram. Ela, então, começou a se enroscar no corpo de ambos, como se tivesse conhecendo-os pela primeira vez. Ela sibilou algo que, obviamente, o público não saberia distinguir. Awa, então, após ouvir o que lhe foi falado começou a escalar a árvore e, por ela ser tão grande, ele sumiu no escuro das folhagens. Em seguida, ele desceu da árvore segurando algo redondo em uma de suas mãos.
A cena seguinte ainda era no mesmo cenário, mas já era noite. Uma fogueira havia sido acessa e os três agora encaravam o achado do garoto: uma fruta redonda, totalmente redonda e prateada, estava em sua frente. A cobra circundava o corpo de Sofía que parecia hipnotizada pelo alimento. O animal, novamente, sibilou. No mesmo momento, as chamas da fogueira irromperam sem nenhum estímulo humano; parecia uma resposta ao que a serpente havia dito. Nenhum dos três, contudo, se deixou levar pelo que acabara de acontecer. Sofía foi a primeira a levar o fruto a sua boca e o mordeu. Awa em seguida. Eles iam oferecer para o animal que os acompanhavam, mas ela já não estava mais lá. O olhar de ambos se encontraram e os seus rostos eram enigmáticos.
Então voltamos para o presente. Eles ainda visualizavam a imagem que estava representada na viga. Um padre, então, chamou a atenção de ambos. Ele parecia estar se escondendo de algo ou de alguém. Sofía apontou com a cabeça para o clérigo e indicou que iria segui-lo. Awa a seguiu. Eles foram no percalço do padre e viram que ele havia entrado em uma porta escondida nos fundos do estabelecimento. Era uma sala coberta de quadros de representações da bíblica, assim como aquelas que podiam ser visualizadas na viga. Havia um, contudo, que estava coberto por um pano já desgastado. Sofía retirou a coberta e seus olhos se arregalaram quando viu o que estava representado ali. Era uma imagem sua, em preto e branco, no mesmo campo que haviam estado no início dos tempos: o éden.
UMA DANÇA PARA O FIM DO MUNDO
A imagem de uma árvore gigantesca figurava na cena seguinte. O filtro preto e branco retornou à ativa. Sofía estava caminhando em direção a grande árvore, ainda sozinha e sobre a nuvem de pássaros negros. As gramíneas estavam cada vez mais altas e as gramas escuras e altas cercavam o corpo da artista quase que por completo. Sofía chegou até a grande árvore e a observou meticulosamente. Ela se aproximou e levou sua mão esquerda até o tronco e a alisou com cuidado. O seu semblante era sério e indicava curiosidade. O som dos pássaros e do vento era o único som que podia ser ouvido. Não demorou mais que dez segundos para que algo acontecesse: o céu ficou escuro, os pássaros ficaram calados e a copa das árvores foi atingida por rajadas de ventos em alta velocidade. Um relâmpago iluminou o céu e, pela luz emitida pela natureza, Sofía vislumbrou algo que a assustou. Ela, então começou a correr.
A corrida por entre a mata foi dificultosa e, em um primeiro momento, parecia sem sentido haja visto que não havia nenhuma ameaça evidente até aquele momento. Foi quando, de repente, um raio incidiu sobre a árvore e o fogo começou a consumi-la por inteiro. As chamas, contudo, não se restringiram ao tronco: espraiaram-se através das gramíneas e abarcavam todo perímetro das matas altas. Sofía já estava salva das chamas. O seu arfava, cansada e o seu olhar era de tristeza. Ao olhar para o céu algo chamou a sua atenção. Um pássaro branco parecia destoar do cenário apocalíptico. Era uma pomba. Não teve tempo para pensar sobre aquilo que havia visto, pois o instrumental da faixa, enfim, começava.
Agora na igreja, Awa era filmado andando em um corredor escuro e repleto de quadros com representações de histórias bíblicas. O cantor vestia uma roupa boemia e simples: uma calça caqui, uma regata e uma camiseta. O cantor cantava enquanto imagens de Sofía eram mescladas com a sua. O primeiro refrão chegou e, com ele, uma cena em que ambos os artistas dançavam juntos em um cenário coberto por chamas. A coreografia acompanhava o ritmo da canção. Neste momento, Sofía vestia algo que parecia ser uma lingerie branca e Awa usava o mesmo estilo de roupa anterior, mas da cor branca. O semblante dos dois não era agradável: enquanto dançavam, a câmera focalizava os seus rostos que, enquanto dublavam, demonstravam preocupação. A cena de dança se repetira em diversos cenários: um campo florido, na própria igreja, em uma praça vazia. Todas essas imagens se sobressaíam uma a outra enquanto o refrão era entoado.
A próxima cena se iniciou com Sofía deitada no chão, com um de seus braços sustentando a sua cabeça. Ela vestia a lingerie branca e calçava meias brancas e salto alto. Em um fundo verde, eram reproduzidas cenas de nuvens carregadas e, acima do corpo da cantora, a mesma pomba branca que havia rasgado o céu em cenas anteriores, agora voava sobre Sofía. Awa, por sua vez, estava sentado em um balanço na mesma sala, com o mesmo fundo e a pomba branca voando acima de seu corpo. O semblante de ambos abandonou o tom de preocupação e adotou uma feição mais sóbria. Não eram risos, mas não carregavam o tom sombrio de uma dança para o fim do mundo de anteriormente. Havia cenas em que o rosto de um completava o de outro em sobreposições contínuas. As imagens em preto e branco se mesclavam às coloridas quando mostravam os cantores juntamente à ave branca no cenário repleto de nuvens.
Em outro cenário, Sofía estava cercada por pessoas diversas que seguravam celulares com o brilho da tela tão intenso que seus rostos eram encobertos pelos raios luminosos. Não havia decoração naquele novo local, a escuridão cobria todo o local e as pessoas que ali estavam pareciam estar sentadas em bancos de madeira dispostos lado a lado. Ela estava no meio de todos e olhava para as mensagens que eles estavam escrevendo em seus celulares. As mensagens, por sua vez, eram postadas em diferentes redes sociais e continham mensagens de ódio e de preconceito. Sofía, então, retirou as suas roupas e ficou completamente nua. Todas as pessoas ali presentes, então, viraram seus dispositivos para gravarem e tirar fotos da cantora pelada, enquanto seus seios eram cobertos digitalmente por uma mancha pixelada. A câmera focou em seus pés despidos e, com apenas um passo, derrubou todos ali presentes no chão e continuou dançando no escuro.
Em retorno à catedral, um grupo de quarente e oito bailarinos se reuniam em um salão gigantesco e dançavam ao ritmo da faixa ao mesmo tempo. Havia dois corpos que pareciam liderar a dança, totalizando cinquenta pessoas no local: Sofía e Awa formavam um par de dança e guiavam os demais bailarinos para a performance. Atrás de uma porta que dava acesso ao grande salão, dois clérigos espiavam o que estava acontecendo e mostravam surpresa e até ojeriza pelo que estava acontecendo em um estabelecimento religioso. A câmera revelou que, na retaguarda desses homens, uma "comitiva" de outros membros da igreja tentavam descobrir outras brechas para acompanhar o que acontecia dentro do salão.
De volta ao jardim em chamas, Sofía dançava sozinha próxima as chamas que pululavam em direção ao céu sem nenhuma orientação. O céu estava escuro, mas, estrelas pareciam pequenos holofotes que incidiam sobre a terra. A lua estava cheia e mais prateada que nunca. Sofía estava encarando o fim do mundo com um momento de dança. As cenas no jardim eram sobrepostas a da cantora deitada no cenário anterior de nuvens e com a pomba branca ainda voando acima de seu corpo. Awa também apareceu ainda sentado no balanço, mas dessa vez a pomba branca já não estava mais com ele. No salão, um pássaro branco voou sobre todo os dançarinos e os artistas. Sofía e Awa correram na direção do animal. Os clérigos viram o que acabara de acontecer e correram na mesma direção.
As chamas do jardim pareciam estar cada vez mais próximas de Sofía, mas ela não parecia se importar com o que iria acontecer. Ela apenas continuava dançando. Awa e Sofía corriam entre os corredores da igreja, com os religiosos na sua retaguarda. Eles foram levados à sala de quadros que haviam estado antes mas, dessa vez, foram trancados pelos clérigos. A pomba branca não parecia estar naquela sala, mas algo havia lhes chamado a atenção. O quadro que fora descoberto por Sofía mostrava outra imagem: era um desenho de ambos os artistas sobre o fogo e uma ave branca que voava acima de suas cabeças. Eles olharam para cima e a viram. Um clarão se sucedeu e tudo ficou branco e mudo. A canção havia sido interrompida.
Eles estavam, novamente, pelados, mas não mais no jardim e sim no que deveria ser o céu. Era um local sóbrio e coberto por nuvens brancas. Espectros de luz negras e brancas andavam lado a lado e ninguém parecia se importar com os dois desnudos que acabaram de chegar ali. Isso não durou muito tempo. Um pequeno espectro da cor negra se aproximou e conjurou uma espécie de mão de energia e Sofía a agarrou para que pudesse ser guiada naquele espaço novo. Eles o seguiram e foram levados até uma porta branca com detalhes dourados, ela se abriu magicamente e um novo espaço, um novo éden havia se formado. A voz de Sofía ecoou por todo o espaço. Enquanto ela falava, imagens de pessoas diversas eram sobrepostas uma às outras: era a materialização do conceito de alteridade, na qual a diferença era celebrada e respeitada.
Há um limite que se impõe entre os humanos e o mundo espiritual. O limite é o ódio. E é este ódio que mata jovens queer há décadas e que os religiosos ortodoxos não conseguem reconhecer como as suas palavras são operadas para o extermínio de pessoas marginalizadas. É chegada a hora de revertermos a situação. É chegada a hora do Juízo Final!
A voz cessou e a música retornou. Todos os que estavam no jardim se puseram a dançar ao ritmo de Juicio Final. Os clérigos que haviam trancado Sofía e Awa na sala dos quadros retornaram à cena entrando na mesma sala. Ao entrarem, contudo, não encontraram ninguém. Eles iam sair até que uma luz alaranjada, o fogo, os consumiu por completo. Uma grande cena coreografada reuniu mais de cem bailarinos, além de Awa e Sofía que dançavam agora com outros companheiros. Assim que a canção findou, todos aplaudiram, enquanto a câmera se afastava da cena.
EPÍLOGO - POR UMA NOVA HISTÓRIA
Awa e Sofía saíam da igreja a pé e pareciam atordoados. Nenhum dos dois falou nada até chegarem a uma praça vazia próxima do local. O olhar de ambos se encontrou e eles sorriram. Awa, então, se despediu da cantora e saiu em um carro de aplicativo deixando-a sozinha na praça. Algo havia chamado a atenção da cantora: um horda de aves negras cobriam o céu como se tivessem fugindo de algo. O seu cenho franziu, mas não se mexeu. Ao olhar para o lado direito viu o que parecia ser uma criança a encarando continuamente. Estranhando, olhou para todos os lados e viu que realmente a criança estava mirando a ela mesma. O pequeno corpo deu as costas e caminhou para dentro de um pequeno bosque que circundava o parque. Sofía a seguiu.
Haviam chegado até uma clareira aberta no meio do bosque. A criança estava sentada no chão verde e alguns animais estavam próximos dela como se a conhecessem e gostassem de sua presença ali. A cantora se aproximou devagar e nada falou. Uma luz se fez visível e o que antes era uma criança se transmutou em uma pomba branca. Sofía sorriu quando viu a ave se despedir dela com um pio e voar pelo céu.
Haviam chegado até uma clareira aberta no meio do bosque. A criança estava sentada no chão verde e alguns animais estavam próximos dela como se a conhecessem e gostassem de sua presença ali. A cantora se aproximou devagar e nada falou. Uma luz se fez visível e o que antes era uma criança se transmutou em uma pomba branca. Sofía sorriu quando viu a ave se despedir dela com um pio e voar pelo céu.
[SOFÍA] Eu não sabia o que era transgressão até ter meu corpo sangrado por isso. Fui agredida dentro do lugar que, diziam eles, iria me salvar. Eu me rebelei e nunca mais voltei. E sabe de uma coisa? Eu adoro ser pecadora se isso significa ser feliz. Não há nada melhor que o pecado. Hoje eu me reconheço e sei quem sou e nada pode me parar.
[AWA] Um dia, então, acordei e vi que aquilo não fazia sentido; nunca fez. Me libertei e hoje, apesar das dificuldades que persistem, não sou mais preso à dogmas idiotas e que confinam corpos e almas em um inferno pessoal.
[ANGELICA] Me libertar dessa correntes foi uma das melhores coisas que já me aconteceu. Sou uma mulher mais completa hoje, pois recuperei o que havia perdido em todos estes anos dentro da igreja: a fé.
[EMÍ] É isso aí, amores, se libertem e sejam felizes. Não templo ou religião que possa impedir você a alcançar aquilo que te faz feliz. Ser LGBTQIAPN+ não é pecado e se for, é um pecado maravilhoso.
[LUCAS] Ainda tenho uma religião, mas ela não me poda. Eu não irei mais permitir que isso me deixe aprisionado.
[RODRIGO] Não tenho mais religião, nem acredito em nada. E foi a melhor coisa que fiz. Entendo que existam pessoas que ainda acreditam nesse algo "superior", mas acredito que, a longo prazo, todes perceberão que a religião só te leva a um lugar, que é ao auto aprisionamento.
[TÔNIA] Nunca mais frequentei um centro religioso. E não tenho vontade. Já estive em tantos e fui tão maltratada em todos, que não quero mais passar por isso.